Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Recuperar das Dependências (Adicção)

Contra o estigma, a negação e a vergonha associados aos comportamentos adictivos. O silêncio não é seguramente a melhor opção para a recuperação; ninguém recupera sozinho.

Recuperar das Dependências (Adicção)

Contra o estigma, a negação e a vergonha associados aos comportamentos adictivos. O silêncio não é seguramente a melhor opção para a recuperação; ninguém recupera sozinho.

As Drogas eleitas pela nossa sociedade

Somos uma sociedade (cultura) que promove e desenvolve “o culto cool” e da moda associado ao consumo de drogas psicoactivas adictivas - licitas, incluindo o alcool, a nicotina e ilícitas? Será uma forma diferente, original e criativa de pensar e fazer coisas? Ou optamos pelo caminho mais fácil (atalhos) na ânsia de procurar responder aos milhares de estímulos e expectativas a que somos sujeitos, dia-a-dia?

 

Portugal é o país da Europa com menor numero de estudos especializados realizados especificamente acerca do consumo de álcool e dos problemas a ele associados (Simpura et al.,2001). Quais são as pessoas e ou organizações interessadas em investigar as consequências autênticas do álcool na nossa sociedade? Qual o interesse publico desta informação? Qual o impacto e o custo na sociedade portuguesa associado ao alcool? E das outras drogas, licitas, medicamentos sujeitos a receita medica (ex. benzodiazepinas - tranquilizantes, ansioliticos) e ilícitas?

Uma parte significativa da nossa população, cujos números exactos (estudos epidemiológicos[i]) não se conseguem obter com exactidão, (desde os jovens, aos adultos, incluindo a população sénior) recorre com mais ou menos frequência, ao consumo de substâncias psicoactivas susceptíveis de causar dependência.

 

Usar drogas é um acto voluntario, uma escolha individual, que pode ser sujeita ou não à pressão do grupo e o ambiente. Nem todos os indivíduos que consomem substâncias psicoactivas adictivas iram desenvolver um problema de abuso ou dependência, assim como consumir esporádico seja sinónimo de doença, mas existe um certo grau de risco (dependendo da potência/efeito da substância, a dose administrada, a duração do consumo e do próprio consumidor). Estes factores (neurologico-bio-psico-social) juntos podem contribuir para um problema grave de saúde, familiar e profissional.

 

 Cada um elege as drogas que lhe proporcionam o efeito desejado. A mesma droga não é eleita por todos. Existem drogas para todos os gostos. Algumas pessoas usam drogas por mera curiosidade, outros para se divertirem, outros para praticarem desporto, pratciar sexo, para “fugirem” ao stress e à pressão diária, para trabalhar, para relaxarem, por motivos de doença, outros recorrem às drogas porque abusam e por último aqueles que estão dependentes (doença da adicção).

 

Existe uma relação entre a oferta e a procura que faz com que hoje as drogas estejam mais disponíveis e presentes no dia-a-dia das pessoas, comparativamente à 15 anos atrás. Provavelmente, todos nós conhecemos, directa (ex. um familiar, ou amigos) ou indirectamente (ex. amigo do amigo), alguém que nesta altura tenha ou já tenha passado por um problema com drogas, incluindo o álcool.

 

Porque é que uns sofrem horrores e destruição nas suas vidas, associado às drogas psicoactivas adictivas, incluindo o álcool, ex dependência (doença/adicção) e outros não?

 

Através do consumo de drogas aprende-se a oscilação das emoções e descobre-se todo um “novo mundo” de novas experiências sensoriais e singulares que de outro modo não seria possível experienciar.

 

A dependência às drogas lícitas, incluindo o alcool e a nicotina, e/ou ilícitas psico-activas, é uma doença do cérebro (adicção). Sabemos que o consumo de drogas altera a percepção (ideias, compreensão) e o funcionamento normal do cérebro (neuroquímica/neurotransmissores) enveredando o adicto na senda da gratificação imediata, procura aquela sensação de prazer e/ou bem-estar única capaz de gerar energia extra, capaz de modificar e ou atenuar (dormente) as emoções dolorosas; ex. raiva e ressentimento, o medo e a insegurança, rejeição numa relação romântica, despedimento (frustração), perda de alguém querido, cansaço físico e/ou sensação de falta de energia, ansiedade e ou sentir-se deprimido etc. As drogas psicoactivas modificam a forma como as pessoas sentem, pensam e agem.

 

 

Testemunho/Partilha de recuperação

“O Fantasma da Licenciatura”

 

Foi em 1987, bem no auge da adolescência, que a minha adicção despertou.Nesse ano, entrei para a Universidade e foi nessa época que eu descobri o meu lado “negro”. A adicção tinha estado escondida em mim embora de vez em quando ela se tivesse manifestado em atitudes compulsivas e desviantes quando eu era mais pequeno. Desta vez a doença da adicção veio para ficar e para arruinar todas as áreas da minha vida. O meu corpo, a mente, o curso, a família, os vários empregos, os sonhos, os projectos, tudo foi arruinado.

 

Então, em 1997, mostraram-me Narcóticos Anónimos (N.A.)[i] através de um Poder Superior[ii] a mim mesmo que vim a conhecer algum tempo mais tarde. Foram os meus amigos que me levaram. “Vem. Vais reconquistar tudo de novo”. Eu não tinha nada a perder.

 

Um ano passou desde o meu porta-chaves “Só Por Hoje”[iii] e eu só vivia para os “Passos”[iv] e para a recuperação - “Homem-Programa”[v] era como me chamavam. Fiz (e continuo a fazer) muito “serviço”[vi], enraizando-me cada vez mais em N.A. Que nome lindo e profundo! Narcóticos Anónimos!

Terceiro ano e “vai ser agora, vou voltar a estudar”. O meu “padrinho”[vii] incentivava-me. Força. Vai em frente! Fui matricular-me… Mas que sensações, que sentimentos estranhos, que medo, que tremedeira me deu nas pernas. Inscrevi-me, paguei as propinas, mas… não regressei lá nesse ano. Nem no ano seguinte.

Até que, já com mais maturidade e mais força, voltei e inscrevi-me novamente, fiz tudo certinho.

 

No primeiro dia lá estava eu. Antigos colegas eram agora meus professores. “Que aconteceu nestes anos todos?”, perguntavam-me os menos atentos da minha primeira turma. “Bem, viajei muito…”. Mas àqueles que estiveram mais próximos de mim e se aperceberam do meu processo, eu não tinha que responder a essa pergunta; eles não perguntavam! E deram-me força.

 

Era um trintão no meio de miúdos! Depressa senti inadequação. Também não demorei a apanhar no “ar das casas de banho” o cheiro de droga. Nunca iria poder ir às festas, nem aos desfiles, nem comemorações, nem jantares… Ao fim de uma semana estava a dar comigo isolado, com dificuldade de adaptação, quando, de repente apareceu o Virgílio (nome fictício)[viii]. Éramos de localidades distantes e não convivíamos. Tinha-o visto numa reunião de NA[ix] ou duas. Era o suficiente para me sentir acompanhado e seguro. Que sentimento de segurança e de confiança aquele quando ele apareceu na entrada para uma aula! Naquele momento, pensei “Ufa”! Estou salvo, alguém como eu!”, e ali começou uma amizade que foi até ao fim do curso e hoje é um dos meus melhores amigos.

 

O meu Poder Superior tem destas surpresas. Está em todo o lado e nunca me deixa sozinho… se eu deixar que Ele me acompanhe!

 

Fui ao desfile final, entre amigos e colegas e o Virgilio. Fui às cerimónias do fim de curso, às comemorações, etc. Jamais tive medo de ter medo, porque eu não estava sozinho!

 

Hoje consigo andar naqueles corredores quando lá regresso. Já vou só, mas não estou sozinho. No meu coração está a família, a minha esposa maravilhosa, as minhas filhas preciosas, que juntamente com os meus amigos formam um Poder maior do que eu que me guia.

 

Carlos C.

 

Comentário: Gostaria de agradecer a colaboração do Carlos C. pelo seu contributo e participação no espírito de Recuperação das Dependências. Este testemunho proporciona a experiencia pessoal, quer seja na adicção activa (passado de dependência de drogas) e no presente a capacidade de se transformar num ser humano mais completo e realizado.

Os Grupos de Ajuda Mutua (neste caso especifico, Narcóticos Anónimos) consagram esse espírito a todos que desejem participar neste movimento de Recuperação.

Um grande Bem-haja ao Carlos C. e votos de uma “Recuperação Iluminada e Duradoura”.

 



[i] Narcóticos Anónimos - Grupo de Ajuda Mutua orientado para pessoas que apresentam problemas de dependência de substancias adictivas.www.na-pt.org/

[ii] Poder Superior – Referencia espiritual, não religiosa (ex não existe dogma), que orienta os princípios e o programa de recuperação (mudança de estilo de vida) dos membros de Narcóticos Anónimos.

[iii] Porta-chaves – Objecto simbólico (aniversario) que celebra a abstinência de substancias alteradoras do humor, (drogas licitas e ilícitas, incluindo o álcool). Neste caso, só por hoje limpo de drogas ou por esta semana.

[iv] Passos – Os Passos, são na realidade 12 Passos, que são a filosofia/ orientação do programa de recuperação (mudança de estilo de vida) de cada indivíduo/adicto de forma a manter a abstinência, a curto, a médio e longo prazo.

[v] Homem Programa – definição (jargão) utilizada entre os membros de NA para aqueles que apresentam excesso de zelo para com o programa e a sua recuperação. Este tipo de comportamento é observado entre os membros mais novos no programa.

[vi] Serviço – Serviço significa participar na estrutura de funcionamento de NA (cargos nas reuniões, Informação Publica, Hospitais e Instituições, etc). Este serviço é uma espécie de voluntariado, em que contribuindo também se esta a ser ajudado - entre-ajuda.

[vii] Padrinho – figura representativa entre os membros de NA. O padrinho é aquele que após adquirir experiencia e conhecimento no seu próprio programa de recuperação e da filosofia de NA, ex. é membro activo há 1 ano, é eleito pelos iniciantes como um mentor. Isto é, podem praticar os 12 Passos, com o padrinho ou madrinha (figura feminina).

[viii] Todos os membros de Narcóticos Anónimos permanecem anónimos, perante o publico em geral (imprensa escrita, TV, rádio etc.). Todavia, não significa que NA seja uma organização “fechada sobre si” ou secreta. Na sua estrutura de serviço NA abre as suas portas a todos os interessados. Ex reuniões de NA abertas, Informação publica, etc. Por ex nos EUA são convidados para participarem em eventos relacionados com a adicção.

[ix] Reunião de NA – local onde os membros se reúnem para partilhar a sua experiencia no programa.