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Recuperar das Dependências (Adicção)

Contra o estigma, a negação e a vergonha associados aos comportamentos adictivos. O silêncio não é seguramente a melhor opção para a recuperação; ninguém recupera sozinho.

Recuperar das Dependências (Adicção)

Contra o estigma, a negação e a vergonha associados aos comportamentos adictivos. O silêncio não é seguramente a melhor opção para a recuperação; ninguém recupera sozinho.

Historias de vida na recuperação da dependência (Rostos e Vozes)

Ao longo de 17 anos de carreira profissional "acumulo" um vasto registo de historias de pessoas. Historias de vida. Historias reais repletas de drama e coragem, de sofrimento e de humildade, de doença e Recuperação. Recordo o nome do primeiro paciente. Recordo imensos rostos e vozes. Alguns são exemplo "vivo" daquilo que o ser humano é capaz de (re)inventar de forma a Recuperar.

 

Recordo uma dessas historias reais.

Conheci um individuo dependente com 38 anos, em tratamento em regime residencial de internamento, afectado pela progressão (consequências negativas) da doença activa (dependência) ao longo de 20 anos. Inúmeros problemas na saúde, família e emprego.

 

Após o período inicial de adaptação ao tratamento,  aproximadamente de um mês, certo dia, este individuo queixava-se de dores de cabeça e pediu medicação. Como era costume, encorajávamos os nossos residentes a ventilar e a expressar as suas emoções dolorosas. Sabíamos que as dores de cabeça eram "normais" derivado à abstinência e à "pressão" do tratamento ex. viver 24/24 horas com 20 e tal indivíduos na mesma casa, grupos diários de terapia, trabalhos escritos (ex. os 45 exemplos danos e impotências), regras da casa, enfim uma realidade completamente distinta do "mundo" da dependência.

 

A maioria dos dependentes fica extremamente ansioso, quando está com algum sintoma desconfortável (dores fisicas); a reacção imediata é "Quero medicação... dói-me imenso a cabeçaNão aguento mais isto."

 

Este individuo andou mais ou menos cinco dias a queixar-se de dores de cabeça. Com a agravante dos sintomas agudizarem-se conforme os dias iam passando. A medicação obedecia a um determinado protocolo clinico por ex. uma vez por dia, ou de 8 em 8 horas, dependendo de cada caso.

 

Comecei a constatar que algo se estava a passar de anormal. Encaminhei este individuo para a urgência do Hospital, recordo que foi acompanhado por um paciente mais "antigo," que também recordo o nome e o rosto.

 

Passado umas horas tivemos a noticia. As dores de cabeça eram provocadas por um tumor maligno alojado na caixa craniana. Segundo o medico, o tumor aumentou de tamanho provocando e intensificando as dores.

 

Ficou imediatamente internado para efectuar exames. Nunca mais falei com ele. Fiquei em choque. Senti-me culpado por não ter "atenuado" as dores e gerado ainda mais sofrimento. Comuniquei a situação clínica à família e forneci-lhes os contactos do hospital. O Centro colocou-se à disposição para ajudar naquilo que fosse necessário, apesar da nossa impotência.

 

Passados uns dias soubemos, pela família, que o prognostico era muito reservado. Iria ficar internado.
Uns meses depois liguei para a família para saber mais noticias e a situação clinica fica cada vez pior. Segundo a família "Ele foi operado, mas esperanças de vida são poucas...os médicos não podem fazer nada."

 

Um dia mais tarde alguém me disse "Sabias que o Carlos (nome fictício) morreu? Foi operado à cabeça, na tentativa para remover o tumor, mas não resultou e acabou por falecer." Fiquei apático e sem conseguir dizer absolutamente nada.
Tentei contactar a família, para saber o que tinha acontecido, mas não consegui. Para mim, a vida do Carlos tinha terminado.

 

Dois anos depois, vinha no corredor do Centro, abriu-se a porta da rua, e vejo entrar o Carlos. Fiquei "assombrado" e pálido. Pensei "Não é possível...este tipo morreu e agora aparece aqui?!"

 

Aproximei-me e fui "recebido" com um sorriso e um abraço "iluminado."

 

Afinal foi boato. Estava ali na minha presença. Não era alucinação. Reparei na cicatriz recente na cabeça. Confirmando a intervenção cirúrgica. Convidei-o a vir ao gabinete para falarmos. Foi uma conversa que nunca mais esqueço na vida.

 

"João, hoje vim ao centro, para esta sessão de pós-tratamento, para receber o medalhão(1) e despedir-me de vocês. Os médicos afirmam que não irei durar muito tempo. Chegou a minha hora. A doença que tenho na cabeça vai matar-me, mas não vou morrer dependente de drogas. Tenho recebido imenso apoio da família e amigos que conheci aqui. Queria agradecer todo o apoio que recebi nesta casa durante o tempo que aqui estive. Ensinaram-me imenso e queria expressar a minha gratidão."

 

Durante o a sessão de terapia de grupo este individuo "brilhou" e conquistou a admiração de todos os pacientes. A sua espontaneidade, humildade, sabedoria e honestidade foi uma "lição" de vida na Arte de Bem viver. Se realizarmos estamos expostos a esta ou outra qualquer tipo de adversidade.

 

Recordo que este individuo fez uma viagem sozinho de comboio de 6 horas (ida e volta) da sua zona de residência até ao local onde estava localizado o Centro. Afirmava estar abstinente de substancias psicoactivas (heroina, cocaía e alcool) há 2 anos.

 

No final, simplesmente despediu-se de TODA a gente e saiu pela porta "grande". Parecia em paz com o mundo, com deus, na forma como cada um O concebe. Parecia aceitar a sua realidade. Era impotente para alterar esta situação e escolheu Entregar soltando-se das preocupações com o passado e ambições com o futuro. Afinal, o que realmente importava era estar "limpo" de drogas e Viver Um Dia de Cada Vez. A Vida tem um fim. Não sabia quando chegaria a sua hora portanto porque preocupar-se com isso?! Cada dia era uma oportunidade única de usufruir da Recuperação e de um Novo Estilo de Vida, na Arte de Bem-Viver.

 

(1) Medalhão. Medalha simbólica que era entregue (conquistada) a todos aqueles que terminavam o tratamento, em regime residencial de internamento, ao longo de três meses. Nesta cerimonia, reunia-se todo o grupo e era uma cerimónia repleta de emoções "fortes". Simbolizava o encerramento de um ciclo disfuncional e o inicio de um novo, cheio de adversidades e conquistas. " A partir daqui nunca mais estarei sozinho."

 

Se passou  por uma experiência (pessoal) de internamento das dependências, regime residencial (comunidade terapêutica),  idêntica pode enviar a sua historia para joaoalexx@sapo.pt para ser publicada no blogue. Recuperar É Que Está A Dar. Bem Haja