Posso dizer que nasci duas vezes; ao que parece, todos os nascimentos são dolorosos, e comigo também foi assim.
Dizem que chorei imenso quando a minha Mãe me deu á luz; afinal, era um mundo inteiramente novo e diferente daquele a que estava habituado, no quentinho protegido de uma barriga.
Desse nascimento não me lembro de nada, mas recordo com o passar dos anos fui crescendo numa infância feliz, aonde tive tudo o que era preciso para me tornar num adolescente saudável, de bem com a vida e equilibrado. Ao invés de me adaptar e integrar no mundo que se me abria e que ia descobrindo, fui crescendo (ou hibernando), cada vez mais fechado em mim próprio sem nunca saber como lidar com todas as contrariedades e dificuldades que eram/são comuns e normais a tantos e tantos jovens.
Descobri as drogas, aparentemente, por acaso, devia ter uns 13 ou 14 anos quando dei as primeiras passas num charro incitado por um novo grupo de amigos, que de vez em quando também o fazia. Rapidamente, percebi que sob o efeito do haxixe, todas as preocupações, frustrações ou dificuldades que pudesse ter, deixavam de existir como que por magia; curtir era a palavra de ordem, e curtir estava sempre associado às drogas; sem perceber que estava a entrar num processo auto-destrutivo, passei a encarar a vida sem qualquer sentido de responsabilidade e a única forma de o fazer era estar permanentemente anestesiado sob o efeito de drogas, na gíria, de cabeça cheia.
A mentira, o engano e os roubos passaram a fazer parte do dia-a-dia e acompanharam a minha escalada na degradação, consumos e experiencias com novas drogas. Não tardou muito, até que, curar as ressacas de heroína e a obsessão pela cocaína eram as duas únicas coisas que realmente importavam na minha vida. Nesta caminhada perdi tudo, amigos, trabalhos, valores, a minha própria família, perdi-me a mim mesmo, uma morte lenta que me levou a um desespero para o qual não via qualquer saída.
Já quase sem vida, renasci. Tinha 28 anos, e tal como da primeira vez (em que vim ao mundo) foi extremamente doloroso encarar a vida tal como ela é. Olhar para mim de uma forma honesta e admitir que toda a vida tinha sido viciado nas drogas, que nada tinha construído e tudo havia destruído, foi a parte mais difícil. Tudo me assustava, tudo me encantava; com a ajuda e orientação dos 12 passos[i] passei a acreditar que afinal era possível viver e ser Feliz, sem ter de usar drogas! A vida passou a fazer sentido, ganhei finalmente fé e deixei de me sentir sozinho. São tantos os sentimentos (Muitos bons e outros mais difíceis mas a vida é assim mesmo) e vivências que a vida tem trazido que nem no melhor dos meus sonhos poderia imaginar este meu renascimento e o quão maravilhoso é afinal, viver!
Passados 12 anos e meio de total abstinência de uso de drogas, agradeço a um Poder Superior[ii] que me trouxe até aqui, à minha família, aos meus amigos, colegas e companheiros de jornada!
Bem Hajam a todos!
Z.
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[i] Os 12 Passos são a filosofia que sustenta o programa de recuperação (valores morais) indivídual através dos grupos de ajuda mútua (ex. Alcoólicos Anónimos)
[ii] Poder Superior é uma conotação espiritual, mas não é religiosa. Não existe dogma e divindades. A espiritualidade, referida neste contexto, é um conceito individual imaterial onde cada um é livre de acreditar (fé e esperança) naquilo que bem entender, por exemplo a experiência e o poder da ajuda entre pessoas com o mesmo problema.
Comentário: Os meus agradecimentos ao Z. pela sua participação anónima no Recuperar das Dependências. Como é do senso comum, a dependência das substancias psicoactivas (Adicção) é um problema complexo e muito difícil recuperar. O estigma, a negação e a vergonha contribui para o agravamento deste fenómeno social.
Gostaria de realçar e ao mesmo tempo valorizar o facto de o Z. ter conseguido encontrar apoio e recursos significativos aos 28 anos de idade e assim travar a progressão/evolução da doença (agravamento dos sintomas: individual, familiar, saúde profissional, justiça). Apesar de não ser conhecida a verdadeira dimensão dos danos (cérebro), sabemos que quanto mais cedo se interromper a doença, através da abstinência, permite ao individuo e família (renascerem) competências e talentos de forma a levar uma vida perfeitamente normal. Não é necessário ir preso, ter doenças crónicas, viver na rua, andar a arrumar carros para se iniciar a abstinência/recuperação. Parabéns Z.