Contra o estigma, a negação e a vergonha associados aos comportamentos adictivos. O silêncio não é seguramente a melhor opção para a recuperação; ninguém recupera sozinho.
Contra o estigma, a negação e a vergonha associados aos comportamentos adictivos. O silêncio não é seguramente a melhor opção para a recuperação; ninguém recupera sozinho.
Um dos temas mais controversos no tratamento da adicção, gira em torno do auto controlo e/ou a falta dele. Paradoxalmente, um número muito significativo de adictos (homens e mulheres) e as suas famílias, apresentam uma predileção especial pelo controlo.
Dependemos unicamente das nossas competências e recursos para realizar os nossos projetos e ambições, isso é sinonimo de auto controlo. Na prática, é-nos incutido de uma forma explícita, que precisamos de controlar os nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos e também dependemos do autocontrolo, para viver, segundo as tradições, as regras e os rituais (paradigmas e estereótipos) da família e da sociedade em relação aquilo que está certo e aquilo que está errado; direitos e deveres.
Dependemos do auto controlo para sobreviver, custe o que custar, nesta batalha campal que é o dia-a-dia, feito de correrias, preocupações e stress.
O autocontrolo e o prazer imediato
O que é que o consumo de álcool, drogas ilícitas, a ingestão de alguns alimentos ou o contrario (restrição alimentar), relacionamentos de intimidade/paixão, o jogo, o sexo, as compras têm em comum? É a sensação de prazer imediato, intenso e de bem-estar que as pessoas sentem. Existem sensações de prazer imediato e intenso, para todo o tipo de gostos e preferências. Todavia, do ato normal e legitimo, curioso, inofensivo e saudável da busca de prazer até á dependência pode ir uma distância muito grande ou não.
Como é que um individuo, que afirma controlar a sua vida, por ex. um médico, uma advogada, um professor, uma engenheira, um bancário, um mecânico ou uma dona de casa, reconhece, que afinal o resultado do abuso de substâncias e/ou comportamento adictivo, revela-se errado, doloroso, disfuncional, ilegal e imoral? Após varias tentativas e estratégias, sem sucesso, para controlar a dependência (adicção), esta torna-se o foco da atenção e dos problemas. Estas pessoas, aparentemente, controlam a sua vida, mas na realidade, não controlam os efeitos e as consequências da sua adicção (doença).
Uma vez despoletado a progressão da adicção, o individuo, que afirma controlar o desempenho das suas funções e obrigações, desenvolve um conjunto de mecanismos psicológicos inconsciente, (negação, racionalização, justificação), cujo intuito, é o auto engano e a auto ilusão, onde é, inconscientemente, capaz de acreditar nas suas próprias mentiras; Nega os aspetos negativos da doença (consequências e efeitos) e reforça, para si mesmo, os aspetos positivos da adicção (reforço positivo – sensação de alivio e o prazer imediato, afirmando “Eu mereço…”, seja obtido através do abuso do álcool, as drogas ilícitas e/ou comportamentos adictivos; jogo, sexo, distúrbio alimentar, codependência, furto, compras). O individuo constrói imagens de si, como alguém que está no seu perfeito juízo/controlo; mesmo tendo vidas duplas; uma vida secreta de adicto e a outra vida publica da negação, do faz de conta.
Não queria começar sem agradecer o convite feito pelo João Alexandre para escrever para os seus blogues. Obrigado!
Decidi escrever sobre este tema porque continuo a assistir a um fenómeno recente, a meu ver, pouco ético de lidar com o cliente/paciente e sua família. Em desespero, as pessoas estão prontas para fazer qualquer coisa, ou aceitar qualquer proposta para parar o sofrimento diário.
Porquê o anonimato? Se pegarmos numa curiosidade verificamos que nas dezenas de irmandades de 12 Passos existe sempre uma palavra que não muda. Então vejamos: Narcóticos Anónimos, Alcoólicos Anónimos, Cocaína Anónimos, Famílias Anonimas, Nicotina Anónimos, entre muitas outras. É fácil, é a palavra “Anónimos” está sempre presente porque é extremamente importante. Esta palavra está sempre presente para proteção. Mas para proteção de quem? Também é fácil. Para proteção dos membros dessas irmandades.
A importância do anonimato surge resultante da experiência acumulada, ao longo de varias décadas, por membros das mesmas irmandades. Sabe-se que a recuperação não é fato consumado, isto significa que a recuperação é construída e alicerçada, todos os dias, um dia de cada vez. Um individuo que hoje está em recuperação; amanhã pode não estar. Para além disso, a vida é uma maratona, e aquilo que hoje podemos considerar inofensivo, não significa que não possa trazer consequências para nós ou para as nossas famílias, a medio e a longo prazo; capaz de gerar muitos momentos de dor e sofrimento.
O que me revolta, é saber que pessoas que estão nesta área de serviço (profissionais no tratamento de adições) e que trabalham com esta abordagem de tratamento (12 Passos dos Alcoólicos Anónimos, vulgo AA) sabem o porquê da existência do anonimato, e mesmo assim, cedem as exigências dos media (por exemplo: a televisão) para ter um espaço num canal a emitir em direto a nível nacional. Isto pode significar, na prática, uma assistência de milhares senão milhões de espectadores.
Não é uma maneira digna de tratar um cliente que é humilhado em frente a milhões de espectadores, entre eles estão familiares, amigos dos familiares, filhos, patrões, enfim, a sociedade em geral. Podem afirmar, que o cliente e a família aceitam este tipo de exposição, mas na realidade, estas pessoas estão em total desespero, aceitam qualquer coisas que os ajude a sair do problema, e os centros de tratamento (instituições) sabem disso. Na minha opinião, deviam protege-los e não expô-los desta maneira.
De acordo com notícias dos Estados Unidos da América, uns indivíduos davam uns dólares aos sem-abrigo alcoólicos de Nova Iorque em troca de uma luta. Ou seja, estas pessoas concordaram agredir-se mutuamente para ter em troca dinheiro para mais uma bebida. Fica aqui a comparação para reflexão.
Na minha breve passagem profissional por Portugal, o centro de tratamento onde fui Coordenador Terapêutico também foi a um desses programas de televisão da manhã, mas com uma pessoa com varios anos de recuperação, sem aquela pressão do desespero para parar de usar, onde aceitou contar a sua vida em frente das camaras. O resultado foi o mesmo: durante aquele dia recebemos dezenas de telefonemas, e eventuais clientes. Então eu pergunto, porque não levam um cliente que tenha uns anos de recuperação? Ou então, levem o cliente e a família em desespero ao programa se isso significa a “oferta” de um tratamento para o cliente, mas POR FAVOR, não mostrem a cara e mudem a voz. Não quebrem o anonimato das pessoas, porque muitas vezes é só isso que elas têm, ou que elas ficam para reconstruir as suas vidas novamente. E todos nós de uma maneira ou de outra sabemos disso.
Leitura recomendada: "Dependência, Estigma e Anonimato nas Associações de 12 Passos" da Catarina Frois, Edição/reimpressão:2009, Editor: Imprensa de Ciências Sociais. Livraria Bertrand.
Comentário: Desde já os meus agradecimentos ao Nuno Albuquerque pela sua participação no Recuperar das Dependências. Também partilho da mesma opinião, quando se expõe publicamente, o sofrimento e o desespero, cujo intuito é a ajuda, as audiências e a publicidade ao centro de tratamento em questão. É uma triangulação (cliente, meio de comunicação social e instituições) confusa e pode revelar-se promiscua, caso não existam políticas e orientações que salvaguardem os direitos do cliente. Já assisti, a esses ditos programas, e parece que alguns limites são de facto, ultrapassados, por ex. informação clinica (confidencial) sobre o cliente e a evolução em tratamento. Este tipo de informação deverá ser partilhado, exclusivamente, entre profissionais, nunca em público.
Quais são as orientações que visam proteger o cliente, previamente esclarecidas e definidas, entre a instituição de tratamento e os meios de comunicação social? Por exemplo; quanto á exposição publica, qual/quais são os fatores de riscos e as possíveis consequências psicológicas no individuo? De que forma são defendidos? Caso se vejam a constatar danos, quem são os responsáveis? A instituição ou os meios de comunicação social? Enfim, existem imensas questões delicadas que devem ser contempladas e esclarecidas, pelas partes interessadas, de forma a prevenir qualquer tipo de dano.
Gostaria também de aproveitar o tema do anonimato, lançado pelo Nuno Albuquerque, para falar sobre a ética, em especial no centro de tratamento com as características já referidas neste texto. Na minha opinião, este tipo de instituições de tratamento, que utilizam os 12 Passos dos Alcoólicos Anónimos[i] devem ter um código de ética (politicas, orientações e regras) e supervisão (supervisor) clinica, de grupo e/ou administrativas (Case management) que definem a organização e a relação entre a própria instituição (hierarquia e constituição), os seus profissionais (instrumentos de avaliação e confidencialidade) e os próprios clientes (conduta e expectativas), a fim de serem salvaguardadas os direitos e os deveres de todos. Só conseguimos usufruir, em pleno, da liberdade quando cumprimos as regras.
Caro leitor/a, se algum dia procurar ajuda, para si e/ou para um familiar, para tratamento da adicção solicite informação sobre o código de ética da instituição.
[i]Importante: Para evitar mal-entendido, gostaria de informar que não existe qualquer tipo de relação comercial, institucional e/ou profissional entre os grupos de ajuda mutua dos Alcoólicos Anónimos (AA) e estas instituições privadas. Por exemplo, nos grupos de ajuda mutua não existem profissionais, não apoiam com qualquer tipo de instituições privadas, a participação dos seus membros é totalmente grátis, não existem cotas ou outro tipo de pagamento/contractos, quando os seus membros vêm a público são totalmente anónimos (não se revela o rosto e a voz dessa pessoa).
As instituições privadas de tratamento, em regime residencial de internamento, da adicção utilizam somente os 12 Passos, na filosofia do tratamento.