A adicção não é um vírus
A recuperação da adicção é um processo para o resto da vida.
Após as noticias recentes sobre o falecimento do actor de Hollywood, Philipe Seymour Hoffman vítima de overdose de drogas ilícitas, intoxicação que ocorre quando o individuo consome uma determinada quantidade de droga que os sistemas vitais do organismo são impedidos de funcionar adequadamente, veio levantar a questão sobre a importância da abstinência, da recuperação da adicção e da recaída.
Philipe Seymour Hoffman permaneceu abstinente durante 23 anos consecutivos. Se o actor faleceu aos 47 anos, fazendo as contas, parece ter iniciado a recuperação com 24 anos. Iniciar a recuperação com esta idade, por si só é um feito extraordinário, mas por outro lado, revela, desde cedo e ao longo do seu desenvolvimento, um individuo vulnerável (predisposição) aos efeitos e consequências da dependência de substâncias psicoactivas, do Sistema Nervoso Central, após duas décadas abstinente, paradoxalmente, recaiu e acabou por morrer de overdose. Não faleceu de cancro ou de doença cardíaca, mas vítima da adicção.
Já em meados de 2013, segundos os media norte americanos, Philipe S. Hoffman deu entrada num centro de tratamento para uma desintoxicação, durante dez dias, depois de ter recaído em heroína. Após ter completado o programa de desintoxicação, aparentemente parece ter voltado a frequentar as reuniões de Alcoólicos Anónimos (AA), note-se, já o fazia desde os 24 anos de idade, até 2014. Uma semana antes de morrer, foi à sua última reunião.
Este incidente, adquiriu um destaque mediático visto Philipe S. Hoffman, ser um actor galardoado com vários prémios, todavia, gostaria de transpor este caso para o cenário da dependência de drogas, da recuperação e da recaída em Portugal. Existem historias semelhantes de indivíduos adictos, em Portugal, que também permanecem períodos consideráveis abstinentes, em recuperação, mas que acabam, por um conjunto de motivos, reiniciar os consumos de substâncias psicoactivas, incluindo o álcool.
Como profissionais, quando nos deparamos com um individuo adicto a substâncias psicoactivas, vulgo drogas, devemos considerar a abstinência uma meta prioritária? A minha resposta é sim. Um individuo com um historial significativo de dependência (adicção) precisa de ajuda e recursos, a fim de repensar, sobre o seu estilo de vida e as drogas.
De acordo com a minha experiencia profissional, visto ainda não existirem estudos em Portugal sobre o tratamento, a recaída e a recuperação da adicção às drogas, o primeiro ano de abstinência é um período crucial, mas ao mesmo tempo critico para o individuo. A adicção às drogas lícitas, incluindo o álcool, e as ilícitas, interferem e comprometem o funcionamento e o desenvolvimento normal do cérebro – estruturas associadas ao prazer e recompensa, assim como a motivação, a memória e a capacidade de tomar decisões. A adicção, conforme vai evoluindo, gradualmente vai incapacitando o individuo de sentir, pensar (défices cognitivos) e tomar decisões saudáveis, ao mesmo tempo, vai deteriorando os vínculos entre as pessoas significativas; perda do controlo, síndrome da abstinência, problemas familiares e profissionais, tolerância às drogas, impotência associado ao sentimento de culpa e a vergonha, a negação e o estigma. Na perspectiva de um individuo adicto, a abstinência total de drogas é interpretada como uma privação radical, com custos psicológicos e sociais consideráveis, porque as substâncias psicoactivas, apesar das consequências negativas funcionam como uma almofada, um amortecedor, um «remédio» e representava um estilo de vida.
Generalizando, o consumo do álcool é encorajado na nossa cultura, somos seres sociais que utilizamos as bebidas alcoólicas com o intuito de «olear» a comunicação. Como profissionais, este tipo de paradigma poderá influenciar a nossa abordagem. Um individuo adicto fica incapaz de adoptar comportamentos saudáveis se consumir drogas, incluindo o álcool. Com muita frequência, escuto este tipo de comentários, entre indivíduos adictos em tratamento das drogas: «Abstinência total? O quê? Nunca mais vou usar drogas? Beber álcool? No verão… ao jantar entre amigos e beber um copo… fumar um charro de vez em quando?»
Um individuo adicto, mesmo em recuperação por longos períodos, não consegue erradicar das suas memórias as sensações e experiencias intensas de bem-estar e alivio que as drogas proporcionaram. Este estilo de vida, centrado nos efeitos das drogas, funcionava como um excelente antidoto de forma a gerir sentimentos desconfortáveis associados ao stress/tensão, ao tédio, à frustração originando uma sensação de despropósito em relação ao rumo da sua vida. A dependência psicológica das substâncias, não desaparece só porque o corpo está livre de drogas – lógica adictiva, exacerbado pelas características da personalidade. Costumo afirmar que viver dependente de drogas é uma ocupação, idêntica ao um emprego, que consome imenso tempo e energia, 24/24 horas, 7 dias por semana e 365 dias por ano. É o assunto mais importante e central na vida do individuo, mais importante até que a própria família, incluindo as crianças, a saúde, a carreira profissional, etc, etc.
Quais são os motivos que levam um individuo abstinente e em recuperação, durante 23 anos, a reiniciar o consumo?