Contra o estigma, a negação e a vergonha associados aos comportamentos adictivos. O silêncio não é seguramente a melhor opção para a recuperação; ninguém recupera sozinho.
Contra o estigma, a negação e a vergonha associados aos comportamentos adictivos. O silêncio não é seguramente a melhor opção para a recuperação; ninguém recupera sozinho.
Cultura que bebe, abusa e encoraja o consumo do alcool, droga legal. Como profissional, trabalho há mais de 30 anos no tratamento das substâncias psicoativas, vulgo drogas considero que o alcool é a droga mais perigosa. Por exemplo, inicia-se o consumo na adolescência, depois os jovens adultos abusam do alcool, o agravamento dos padrões durante a fase adulta e terminam com problemas de abuso e dependência que se prolonga ao longo de 20 anos, 30 e 40 anos. Uma vida inteira expostos aos efeitos negativas na saude fisica e mental - contra o estigma, a vergonha e a negação. A esta dura realidade, acrescentamos os efeitos na familia ( incluindo as crianças), no trabalho, etc. Conheço casos de indivudos com 60 anos que parecem ter 80. Segundo o site do Sicad (2018) calcula-se que existam mais de meio milhão de alcoolicos cronicos em Portugal e segundo novos estudos morrem, em media, por dia, 20 pessoas cujas causas estão directamente relacionado com o alcool. O alcool é uma droga legal que gera imenso sofrimento às pessoas e pode matar. Os líderes politicos conhecem esta realidade, não só pelo efeito negativo nas pessoas, mas os custos para o estado são enormes. Todavia, existe tratamento para o abuso e dependência alcoolica, é possivel recuperar, não me refiro somente ao individuo, mas a toda a familia, incluindo as crianças.
Sou a Inês e sou uma adita. Sim hoje aceito que sou uma adita e que usei mascaras demasiado tempo vivendo uma vida dupla, e negando a minha adição.
Na verdade, quando estava na minha adição ativa, tinha uma visão distorcida de mim mesma e da realidade á minha volta. Mas esse foi mesmo o objetivo inicial dos meus consumos, anestesiar a imagem que tinha sobre mim e todos os sentimentos associados a ela.
Hoje, estou limpa á mais de 4 anos e quando faço uma retrospetiva da minha vida, consigo identificar com muita facilidade a minha adição desde muito nova. As compulsões por obter prazer imediato estão bem presentes desde muito cedo, numa tentativa de controlar a intensidade das minhas emoções negativas e de calar a voz autodestrutiva que ecoava na minha cabeça que me dizia que eu não tinha nenhum valor, e que ninguém nunca podia gostar de mim. No fundo era a minha baixa autoestima e a minha falta de sentir pertença e a minha incapacidade de aceitar a vida como ela é.
Mas na altura não o sabia, e encontrei no álcool e nas drogas um alívio temporário e ilusório para o meu problema. Era como se anestesiassem o que sentia sobre mim. Quando consumia, aquela voz que me destruía e me fazia sofrer intensamente parava de falar, e assim julguei que tinha encontrado o que precisava para não sofrer mais.
No entanto as consequências desta solução, a longo prazo foram devastadoras. Tanto quis fugir de mim que me perdi completamente, os consumos foram cada vez mais frequentes, os riscos corridos cada vez maiores, no peito a sensação de vazio crescia, escavando um buraco cada vez maior. Já não sabia quem eu era, e apos várias tentativas falhadas de parar de consumir sozinha, estava num círculo vicioso de autodestruição, achava que enganava os outros com as minha vida dupla e manipulação, mas enganava-me era a mim própria cada vez mais em cada moca e cada ressaca.
Aos 35 anos graças á ajuda da minha família, fui internada num tratamento para dependências, onde iniciei a minha recuperação que começou com a abstinência de substâncias num ambiente controlado, onde me confrontaram com as evidências do descontrole em que a minha vida se tinha tornado. Aí foi quando baixei os braços e aceitei a minha impotência perante as drogas e tomei a decisão de começar o processo de reconexão comigo mesma que graças ao meu poder superior, até hoje continuo a trilhar.
Nas salas de Narcóticos Anónimos (1) encontrei exemplos, ouvi experiências de vida e para mim mais importante do que tudo, percebi que não estava sozinha e que havia ali pessoas que eram capazes de sentir as emoções mais negras e autodestrutivas, exatamente como eu. Independentemente de onde vinham, de quais as drogas que haviam consumido, quando falavam eu revia-me nas suas palavras, eu conseguia facilmente identificar em mim os mesmos sentimentos e os mesmos comportamentos. Pela primeira vez na vida senti que pertencia em algum lugar, senti o poder do que se costuma dizer nas salas “juntos conseguimos o que sozinhos nunca fomos capazes”.
Desde o momento que entrei em recuperação iniciei um processo profundo de autoconhecimento e de transformação pessoal. Fui tirando camadas sobre mim mesma e mergulhando cada vez mais em quem eu sou e só por hoje continuo a querer este caminho. Só por hoje não me vou autossabotar nem ser desonesta com o que sinto.
Aprendi a gostar de mim a viver em paz com quem eu sou e que tenho tudo o que preciso no meu mundo interior. As feridas só saram quando as destapamos, não vão lá com pensos rápidos, como são o álcool e as drogas.
Uma coisa tenho a certeza estando limpa e serena, na minha vida, muito mais será revelado….
Deixo a sugestão de um livro que fez parte deste meu processo e que fala sobre a coragem de ser quem somos.
“Propósito” de Sri Prem Baba da editora pergaminho
(1)Narcóticos Anónimos (NA) são grupos de ajuda mutua, em Portugal desde 1985 e existem reuniões no continente e ilhas. Existem reuniões de NA em praticamente em todo o mundo.
Comentário: Bem hajas Inês pela tua participação no Recuperar é que está a dar. O facto de seres uma mulher em recuperação, contraria o estigma e a vergonha oriundo da sociedade e o teu exemplo consegue mudar atitudes moralistas e preconceitos. Certamente, o teu texto será uma fonte inspiração e identificação a outras mulheres que procuram soluções para o seu sofrimento e perda do controlo, caracteristicas da adicção activa. Ao longo de 30 anos de experiência profissional, considero que as mulheres sofrem mais do que os homens as consequencias negativas da adicção. Desejo-te sucesso, paz e felicidade. Obrigado.
“A Recuperação é uma dádiva, que só foi possível acolhê-la quando me rendi, baixando os braços com humildade, pedindo ajuda.”
Vivi muitos anos a acreditar que controlava o uso de drogas. Uma vida dupla, com muita manipulação, “a brincar com a vida”. Tempos limpa, tempos a usar, tempos a fazer tratamentos, a construir e a destruir. A última recaída, levou-me rapidamente a um estado de degradação, um completo descontrolo facilitado com dinheiro que meu pai deixou quando faleceu.
Completamente obcecada pelas drogas e a usar compulsivamente à procura de algo que não sabia o que era. Comecei a ter medo de morrer, mas também tinha medo de deixar as drogas e viver sem elas. Desconectada de mim. Onde é que eu estava? E foi essa necessidade de me encontrar, mais o amor das minhas filhas que deu coragem para parar de usar, mais uma vez…
Pedir ajuda foi a primeira etapa. Por um lado, sentia-me tão frágil e por outro, queria viver.
Rendi-me perante os factos evidentes da minha destruição total como ser humano. A mais visível era a componente física, mas a mais dolorosa, era destruição da minha alma, invisível a olho nu, mas visível ao meu olhar- uma mágoa enorme, vergonha, desespero, frustração e muita confusão.
Foi quando conheci o programa dos 12 passos que comecei uma viagem diferente. Encontrei pessoas como eu, que tinham problemas com drogas e que queriam aprender a viver sem ter que as usar. As identificações sucederam-se, o sentimento de pertença e amor contribuíram para que começasse a acreditar, que afinal o meu caso, não era um caso perdido, como tantas vezes ouvi.
Após a publicação sobre o abecedário da recuperação, amavelmente recebi um email da Alda Reis que respondeu ao meu apelo para participação dos visitantes/seguidores do blogue.
Segundo a Alda, acrescentou ao ABC da recuperação 2018:
Perdão,
Humor,
Dádiva,
Atitude,
Exercício físico,
Gratidão,
Auto Imagem
Bem haja Alda Reis pela sua participação.
Caso você também esteja interessado/a em participar no ABC da recuperação, pode faze-lo enviando um email para joaoalexx@sapo.pt com as palavras ABC no assunto da mensagem. Para participar não precisa de ser adicto/a, a sua opinião também é valida. Bem haja
Em 2015 o Professor David Best e colegas da Universidade de Sheffield Hallam, Inglaterra, em parceria com a Action on Addiction conduziram o primeiro questionário sobre a recuperação da adicção - dependência de substâncias psicoativas do Sistema Nervoso Central, vulgo drogas, lícitas e/ou ilícitas. Os participantes no estudo incluíam indivíduos do sexo masculino (53%) e indivíduos do sexo feminino (47%) que atualmente residem em Inglaterra. 74% dos participantes, dependentes de outras drogas, afirmaram estar também em recuperação do alcoolismo. O questionário abrangente contemplou varias áreas da vida dos indivíduos:
Relacionamentos, educação, emprego
Saúde e bem-estar
Tipos de adicção
Recuperação (duração, abstinência)
Envolvimento em tratamento e/ou participação em grupos de ajuda mutua
Área financeira
Família e vida social
Justiça/questões legais
De acordo com os resultados do questionário os indivíduos afirmaram ter um historial de dependência de substâncias psicoativas (adicção) de 20.4 anos. De salientar que os indivíduos dependentes de álcool apresentaram uma tendência para serem admitidos, em tratamento (receber apoio profissional - meia idade, 40 e os 65 anos), em faixas etárias diferentes, dos indivíduos dependentes de substâncias psicoativas, licitas e/ou ilícitas (drogas).
- O tempo/duração da recuperação do grupo dos intervenientes ronda os 8.3 anos
- Os indivíduos do sexo feminino revelam um historial diferente, quanto ao tempo que permanecem dependentes de substancias psicoativas, comparativamente aos indivíduos do sexo masculino, 17.7 (feminino) vs. 22.4 anos (masculino). Os indivíduos do sexo feminino iniciaram a recuperação mais cedo, comparativamente aos homens – 37.2 vs. 39.2 anos.
- 65% dos participantes consideram que continuam em recuperação, enquanto 7% considera estar recuperado, vulgo curado.
- 70% afirma ter participado, pelo menos uma vez, numa reunião dos grupos de ajuda mutua, por exemplo, dos Narcóticos Anónimos, Alcoólicos Anónimos e SMART Recovery.
- 69% afirma ter recebido apoio profissional/tratamento.
- 51%. afirma ter sido sujeito a medicação prescrita pelo medico.
Conclusões
Os autores do estudo, admitem serem defensores do conceito de recuperação das dependências de substancias psicoactivas lícitas e/ou ilícitas, concentrando assim os seus esforços, principalmente, sobre os efeitos positivos da recuperação:
Redução acentuada, na colocação dos filhos de pais dependentes de substâncias psicoativas em recuperação, em instituições de apoio à criança, assim como, em relação ao reagrupamento/estrutura familiar apresentam resultados positivos concretos.
O índice de violência domestica, em indivíduos adictos ativos calcula-se entre os 39%, enquanto a mesma taxa entre os indivíduos em recuperação calcula-se entre os 7%, uma diferença significativa de 32%.
Aumento da empregabilidade, segundo o relatório do estudo, 74% dos indivíduos em recuperação permanece durante longos períodos no local de trabalho e 70% afirma pagar impostos, as suas dividas, assim como, voltam a ter acesso ao crédito, por exemplo, em instituições bancarias.
Apresentam taxas reduzidas de problemas com a justiça, por exemplo; prisão. Aqueles indivíduos em recuperação, de longa duração, gradualmente deixam de se envolver em actividades ilícitas.
A conclusão final dos autores, sobre este estudo, reforça que a recuperação das dependências de substancias psicoactivas, licitas e/ou ilícitas, vulgo drogas, não se resume somente à interrupção dos comportamentos problemáticos e ao consumo de drogas, visa também a adoção de estilos de vida responsáveis e positivos em prol do autoconhecimento (selfcare) e da sociedade.
79.4% dos participantes no estudo, após terem iniciado a sua recuperação, refere ter participado em ações de voluntariado na comunidade e participado em grupos cívicos.
Amavelmente, a Editorial Bizâncio enviou-me o livro "O meu nome é..." de Alastair Campbell (alcoólico em recuperação). Aproveito para sugerir a sua leitura às pessoas interessadas sobre o tema do alcoolismo.
De acordo com a minha experiência profissional de duas décadas, o álcool é a droga mais perigosa: afecta o individuo, a sua família, incluindo as crianças, e a sociedade. Algumas tradições culturais disfuncionais promovem e reforçam o consumo e o abuso do álcool. Paradoxalmente, as mesmas tradições disfuncionais que reforçam o estigma, a negação e a vergonha associado ao alcoolismo.
Recuperar é que está a dar. Apesar da complexidade da doença da adicção é possivel recuperar. Se identifica um problema na sua vida, relacionado com drogas lícitas (alcool ou benzodiazepinas) ou ilícitas, você não está sozinho/a.
27 de Julho de 1938 - O Dr. Silkworth escreve um artigo que é publicado no livro "Big Book", dos Alcoolicos Anónimos,intitulado “A Opinião do Médico"
"Especializei-me no tratamento do alcoolismo durante muitos anos.
No inicio dos anos 30, tratei um paciente que, apesar de ter sido um homem de negócios competente, com muita capacidade para ganhar dinheiro, era um alcoólico de um tipo que eu tinha chegado a considerar irrecuperável.
Durante o seu terceiro tratamento adquiriu determinadas ideias sobre um possível programa de recuperação. Como parte da sua reabilitação, começou a dar a conhecer os conceitos do seu programa de recuperação a outros alcoólicos, incutindo neles a necessidade de fazer o mesmo com os outros. Este conceito veio a tornar-se a base de uma associação formada por alcoólicos em recuperação e pelas suas famílias em rápido crescimento. Tudo leva a crer que este homem e mais uma centena se recuperaram .
Pessoalmente, conheço também um numero de casos idênticos em que outras abordagens diferentes falharam por completo.
Estes factos parecem ter a maior importância médica, e devido às extraordinárias possibilidades de rápido crescimento inerentes a este grupo, eles podem vir a assinalar uma nova abordagem nos anais do tratamento do alcoolismo. É bem possível que estes homens tenham um solução para milhares de casos de pessoas com problemas com o álcool.
Pode confiar-se inteiramente em tudo aquilo que partilhem a respeito de si próprios.
Atenciosamente,
William D. Silworth"
Comentário: No passado dia 27 de Julho de 2014 celebrou-se setenta e seis anos (76) após a publicação da carta do Dr. Silkworth. Podemos constatar que a sua visão sobre "(...) estes homens..." veio revelar-se uma realidade inquestionável, não só nos EUA, mas em todo o mundo, incluindo Portugal. Faço votos que mais profissionais da saúde, em Portugal, possam também ter uma visão semelhante sobre o tratamento do alcoolismo visto ainda existirem imensos mitos, estigma e falsos preconceitos sobre o programa de recuperação dos Alcoólicos Anónimos.
Este texto, enviado pela Renata, veio no seguimento de uma publicação no Facebook onde solicitei o envio de experiências de adultos, que tenham tido pais com problemas de álcool e/ou drogas ilícitas. Eis o relato da Renata.
“Tenho um pai e uma irmã que bebem todos os fins de semana, e às vezes, no meio da semana. Vivem dizendo que é normal, e que, como todos fazem , que mal tem ? Mas percebo a incoerência nas atitudes, no modo de vida maquiado como normal, porém completamente fora do contexto. Percebo atitudes completamente diferentes do "viver em conjunto" o álcool ou a adicção retirou deles o pé do chão, como se estivessem literalmente voando ou como se vivessem em outro mundo sendo o convívio muito difícil dado ao fato que podemos ser diferentes mas precisamos concordar em conectar.
Não há dessas pessoas o menor interesse em saber sobre isso ou parar esse processo...sou adicta e “limpa” e esses familiares precisam de ajuda mas talvez a única maneira de ajudá-los seja ficando bem longe!
João, acabo de expor-lhe minha realidade e tem a ver com o post sobre familiares adictos!
Obrigada”
Renata Ramos
Nota: Todos os dados foram preservados com a devida autorização da autora. Contra a contra o estigma, a negação e a vergonha. Bem-haja Renata
Comentário: Tal como a Renata refere, a estrutura familiar aparenta estar afectada pelo álcool. Segundo alguns estudos, nos EUA, referem:
Os filhos de pais alcoólicos estão mais vulneráveis ao risco de desenvolverem problemas com substâncias psicoactivas – abuso e dependência.
Os pais que apresentam problemas com álcool e/ou outras drogas podem influenciar os comportamentos dos seus filhos. O consumo e o abuso de drogas, incluindo o álcool, podem ser considerados permissivos entre a família, incluindo as crianças.
As famílias afectadas pelo álcool e/ou outras drogas estão mais propensas ao conflito, comparativamente, aquelas famílias que não estão expostas ao problema do álcool e/ou drogas. Os problemas na família giram em torno do consumo e do abuso de substâncias psicoactivas.
O ambiente familiar disfuncional, relacionado com o álcool e/ou outras drogas, propicia a negligencia das crianças e a falta de comunicação entre os seus membros; referências parentais, os papéis na estrutura e dinâmica da família e a gestão de conflitos.
Alguns problemas identificados nas famílias com problemas de álcool e/ou outras drogas: Tendência para o incremento do conflito familiar, violência física e emocional, redução da coesão e da organização familiar, stress e isolamento, problemas de saúde e no trabalho, problemas/ conflitos conjugais e financeiros, mudanças drásticas na estrutura familiar, incluindo as crianças.
O seu pai e/ou mãe tem um problema com álcool? Ou drogas? Caso você seja filho/a de pais alcoólicos ou dependentes de drogas ilícitas escreva um pequeno texto sobre a sua experiência a fim de ser publicada no meu blogue. Pela minha experiência profissional de duas décadas e apesar de não existir estudos sobre este tema, existem em Portugal centenas, de filhos de pais alcoólicos ou dependentes de drogas, hoje adultos, que ainda sofrem em silêncio o trauma, o estigma e a vergonha. Recuperar É Que Está A Dar
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